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Ano IV - Nº 56 - Segunda quinzena de outubro de 2002


Heterocontrole?

Paulo Capel Narvai*



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Muitos já me disseram que não gostam da palavra...Heterocontrole lhes soa estranho. Parece palavra mal traduzida de algum complexo conceito desenvolvido em outra língua - talvez por algum pesquisador sueco, alemão, inglês. Mas... nada disso. O termo é brasileiríssimo. Então, de onde vem? Qual sua origem? O que significa? Neste artigo vou contar essa história. Quis fazê-lo pois escrevo em setembro de 2002 e porque, falar disso é, para mim, um jeito de, uma vez mais, reconhecer o papel e a importância de um grande mestre, a quem milhões de brasileiros, mesmo sem saber, devem muito, pois dedicou sua vida profissional à luta contra as cáries.

Heterocontrole ocorreu-me, num lampejo, numa conversa com o saudoso professor Alfredo Reis Viegas, renomado catedrático de Odontologia Sanitária da Universidade de São Paulo. Era 1982 e eu estava participando intensamente da campanha eleitoral que levaria Franco Montoro ao governo do Estado de São Paulo — interrompendo uma série de governadores biônicos do período militar. O professor João Yunes, que viria a ser seu secretário de Saúde, coordenava uma comissão que definia as propostas de mudanças na área da saúde. Eu assumira, nessa comissão, a responsabilidade pela organização do grupo de saúde bucal, um dos vários que a constituíam. Uma das proposições definidas nesse grupo de saúde bucal era a ampliação da fluoretação das águas de abastecimento público. Mas não bastava ampliar. Era preciso, também, garantir a continuidade da medida e a qualidade da fluoretação pois chegavam ao grupo informações sobre paralisações da fluoretação e "falta de controle" em alguns municípios. Havia relatos de situações em que se dizia que a cidade tinha flúor mas que isso só acontecia "no papel" pois a companhia de abastecimento, para reduzir despesas, não adicionava o sal (na época os produtos mais empregados no Estado eram o fluoreto de sódio e o fluorsilicato de sódio). Falava-se, também, de situações em que se suspeitava haver nas águas quantidades de flúor acima do teor indicado, pois "o sujeito que cuida disso não tem nenhum preparo e ninguém presta atenção no que ele faz"...

O que fazer, então, para enfrentar essa situação? A pergunta levou-me à sala do professor Viegas, na Faculdade de Saúde Pública da USP, onde eu havia me especializado um ano antes. Depois de várias tentativas consegui que ele me recebesse para tratar desses assuntos. Com o mau humor característico, em pé, e mexendo nos papéis sobre a mesa como quem procura algo que deveria estar ali mas não está (e, claro, o indefectível cigarro nos lábios), Viegas, olhos nos papéis, foi logo avisando: "Fala logo, meu filho, que eu estou com pressa!". Meu humor, que habitualmente não é dos melhores, piorou. Mas eu o conhecia bem e sabia que, nessas situações, só tinha uma chance de, pelo menos, ser ouvido: atacar e provocar o seu senso de responsabilidade. Viegas era (sempre foi) um conhecido defensor da fluoretação das águas - talvez o mais convicto e empedernido, entre os brasileiros. Era um pesquisador seríssimo e ciente de sua responsabilidade pública. Usei isso e fui ao ataque, na esperança de conseguir alguns minutos e, quem sabe?, ser convidado a me sentar. Ainda em pé falei - alto e bom som, meio sorrindo e meio pretendendo ameaçar - algo como: "Está com pressa mas o assunto é importante! Acho bom me ouvir... Estão dizendo que o senhor, para defender a fluoretação, está ‘fechando os olhos’ para as trapalhadas que estão fazendo em vários lugares." Tirou os olhos dos papéis, olhou-me por sobre as lentes - presas a uma armação preta, daquelas bem anos sessenta — e sentenciou: "Senta aí." Eu me sentei, ele se sentou: "Que história é essa? De que trapalhadas você está falando?". Assim começou uma conversa que durou umas duas horas...

Expliquei-lhe a natureza das questões para as quais precisávamos definir uma proposta de ação e que, antes disso, eu gostaria de ouvi-lo. Tínhamos a informação de que em pesquisa conduzida pela Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Básico (CETESB), sobre concentração de flúor nas águas de 22 cidades do Estado de São Paulo, havia se constatado que em 14 (63,64%) os valores estavam abaixo do teor ótimo recomendado. Disse-lhe, então, que pensávamos que a Secretaria da Saúde deveria assumir a responsabilidade pelo controle da fluoretação. Viegas não gostava da idéia de alguém "ficar se intrometendo no trabalho dos engenheiros" para "fiscalizar a fluoretação". Aceitava a proposta de dar maior divulgação aos dados das empresas de saneamento. Mas parava por aí. Eu lhe dizia que precisávamos ir além e que não eram suficientes informações sobre controle operacional, que nem todas, mas que algumas empresas poderiam forjar dados, falseando seus resultados etc. Defendia que deveríamos colher águas em diferentes pontos da rede de abastecimento e analisar o teor de flúor. Ele insistia em que o mais importante era fluoretar e que, "se a quantidade de flúor que se coloca na estação de tratamento é a mesma que se encontrará em toda a rede, pois a perda é mínima", então, não havia razão para medir essa quantidade em outro lugar sendo suficiente a medida feita na ETA [estação de tratamento de água] "pelos engenheiros"...

Seguia a conversa.

O núcleo da sua argumentação era "deixar os engenheiros fazerem o trabalho deles respeitando sua autonomia". Viegas como que sublinhava verbalmente o "respeitando sua autonomia". Para ele, "fiscalizar o que faziam" poderia criar dificuldades adicionais aos engenheiros defensores da fluoretação (pois havia os contrários...) e, no final, "fazer todos desistirem, e aí, meu filho, é que não se vai fluoretar mais nada mesmo!". Não eram temores infundados. No caso do município de São Paulo, Viegas lutou durante três décadas até ver a cidade com flúor nas águas. É, sem dúvida, o principal responsável por essa importante conquista.

Ao argumento da autonomia contra-argumentei com a noção de heteronomia, dizendo, com muito tato, que não era bem assim e tal, que a qualidade da água e o flúor que ela deveria conter interessavam a toda a sociedade e que, por isso, "os engenheiros" deveriam estar submetidos a certos deveres, a prestar contas e a ter, sim, seu trabalho controlado e que isso não significava desrespeito à sua autonomia profissional... Tratei, também, de sublinhar verbalmente a "heteronomia". Em suma, que não eram suficientes os procedimentos de controle operacional na ETA e que, portanto, "nós dentistas sanitaristas, deveríamos fazer uma espécie de... heterocontrole, ou algo assim". O termo heterocontrole ocorreu-me, portanto, assim, numa conversa sobre heteronomia, controle, rede de abastecimento, engenheiros, ETA...

Falei, falei, falei...

Mas não teve jeito. Deixando de lado o peculiar mau humor, Viegas ainda brincou: "Ih, meu filho, você vai é arrumar problemas com isso de heteronomia, heterocontrole, hetero-não-sei-o-quê... Fale com o Horta e o Alonso [engenheiros da Sabesp] e apóie os engenheiros. Sem eles você não vai conseguir fluoretar São Paulo, não... Deixe o controle com eles." Deu um meio-sorriso (sem tirar o restinho do cigarro dos lábios, claro) e, já se levantando, acendeu com a bituca mais um cigarro: "E agora me dá licença que eu estou com pressa!". Heterocontrole? Ele era contra e pronto.

Mas, tendo aprendido a não fazer o que o mestre mandar, achei que devia seguir usando a palavra e discutindo essas questões. Naquele ano mesmo, em setembro de 1982, num curso de "Odontologia Preventiva" no VII CUBO — Congresso Universitário Brasileiro de Odontologia, ao defender a fluoretação da água como uma medida estratégica para a prevenção da cárie no Brasil, falei, entre outras coisas, do tal "heterocontrole" para um público de pouco mais de meia dúzia de estudantes de odontologia. Desde então mudou muito o interesse pela odontologia preventiva e, também, pelo heterocontrole. Anos depois, em 1990, o Município de São Paulo montou o primeiro sistema de vigilância sanitária da fluoretação das águas, com base nesse princípio — segundo o qual "se um bem ou serviço qualquer implica risco ou representa fator de proteção para a saúde pública, então além do controle do produtor sobre o processo de produção, distribuição e consumo deve haver controle por parte das instituições do Estado".

Exatos 20 anos depois, em setembro de 2002, a palavra continua soando estranha, pode não ser simpática e têm circulação restrita a alguns especialistas. Mas os resultados da fluoretação das águas, sob vigilância sanitária, esses sim beneficiam milhões e não têm nada de estranho.


* Paulo Capel Narvai é cirurgião-dentista sanitarista e mestre e doutor em Saúde Pública. É também professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e autor de Odontologia e Saúde Bucal Coletiva (Ed.Santos, 2002).


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