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Ano VI - Nº 93 - Dezembro de 2004

Meu sorriso do ano - 2004

Paulo Capel Narvai*

 

No pódio, em plena Cerimônia de Encerramento da 28ª Olimpíada da Era Moderna, era ainda um sorriso assustado. O olhar estava tenso, desconfiado, conferindo em alta velocidade a tudo e a todos que o cercavam. Aos poucos foi se acalmando – e o sorriso, espontâneo, voltou. Mas o sorriso que o fez ganhar o Prêmio Meu Sorriso do Ano – 2004 fora dado um pouco antes quando, antes de desenhar no ar um coração e mandar beijinhos para o público, abriu os braços e, como que planando no Estádio Panathinaiko com seu “aviãozinho” humano, cruzou a linha de chegada quase às gargalhadas de tanto contentamento.

Foi um sorriso brasileiro.

Não sei se são naturais os dentes de Vanderlei Cordeiro de Lima, o maratonista paranaense de 35 anos de idade, ex-bóia fria que acabou ficando com a medalha de bronze na maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas, na Grécia, em 29 de agosto. O leitor há de compreender minha preocupação de dentista com os dentes do nosso medalhista olímpico. É que atletas brasileiros, mesmo os que chegam (ou quase chegam, como no caso do futebol masculino...) a uma disputa olímpica, sempre apresentam problemas de saúde na área odontológica. Por falar em futebol, e apenas para ilustrar numa publicação dirigida a dentistas, reproduzo uma nota publicada na coluna Painel FC da Folha de S.Paulo em 29/12/2003: “Quatro jogadores da sub-23 foram ‘reprovados’ no exame odontológico. O lateral (....) tinha problemas no pré-molar, o goleiro (....) e o zagueiro (....), cáries, enquanto o santista (....) teve que passar por uma limpeza de tártaro.” O padrão olímpico brasileiro, como se vê, deixa muito a desejar...

Naturais ou não, os dentes de Vanderlei compuseram um belo sorriso na Grécia. Um sorriso brilhante, tanto quanto o brilho da sua medalha de bronze. Somados, os brilhos do sorriso e da medalha reluziram mais que ouro. Mais festejado do que o ganhador do ouro (lembra-se quem? o italiano Stefano Baldini), o brasileiro barrado acabou dando mais entrevistas que o vencedor da corrida.

No pódio, um buquê nas mãos, a medalha no peito, a coroa de folhas de oliveira na cabeça, e a bandeira brasileira nas costas. Não faltavam elementos para atrair a atenção, mas foi o sorriso de Vanderlei que atraiu os olhares. Apesar de tudo, ele sorria.

Vale recordar que Vanderlei liderava a prova quando, já no trecho final, foi derrubado pelo ex-padre irlandês Cornelius Horan, que saiu do meio do público para barrá-lo. O brasileiro foi apoiado pelo grego Polyvios Kossivas, e prosseguiu até o final. Foi salvo por “Zeus”, apelido dado posteriormente ao grego que o libertou, conforme contou em dezembro, quando Polyvios veio ao Brasil abraçá-lo e passear, com direito a muitos sorrisos e cumprimentos pelo gesto desinteressado que garantiu uma medalha ao brasileiro.

Indagado na época sobre se venceria a prova se não fosse o incidente, Vanderlei, modesto, respondeu que não sabia mas que, certamente, a final seria diferente... Generoso, induzido por repórteres a culpar a organização da prova, preferiu falar sobre a sua garra para chegar lá: “Não culpo a organização, não. Foi um fato isolado, que poderia acontecer em qualquer outro lugar.” Tivesse o episódio acontecido no Brasil, e fosse um grego, ou um irlandês, a ser barrado numa prova semelhante por aqui e já sabemos os adjetivos que recairiam sobre nosso país. Ah, sim, os organizadores dos Jogos Olímpicos investiram cerca de US$ 1,5 bilhão em segurança...

Desde a “vitória moral” na competição Vanderlei teve muitos momentos especiais, na Grécia e no Brasil, para sorrir muito. Seus dentes brilharam sob o foco de todo tipo de câmera, ao ar livre e em diferentes estúdios. Virou herói popular.

Enquanto prosseguia a batalha no “campo diplomático” do sistema de poder esportivo mundial, para dar a Vanderlei a medalha de ouro que lhe subtraíram, vimos por aqui um fato inusitado: em visita ao Brasil em setembro, o primeiro-ministro japonês, Junichiro Koizumi, revelou que gostaria de se encontrar com... Pelé? Ronaldo? Zico? Não. Queria dar um abraço em Vanderlei Cordeiro de Lima. Mais: pediu e ganhou do nosso maratonista uma réplica, ao vivo, do “aviãozinho” que levou ao delírio o público do estádio Panathinaiko. Então, Vanderlei abriu de novo aquele sorriso largo, franco, que traduz a alegria de quem, efetivamente, tem prazer com o esporte e parece estar preocupado, apenas, em superar os próprios limites. Perguntado sobre se havia ficado com raiva do que acontecera em Atenas repetiu pela enésima vez: “Não. Minha felicidade é maior do que o meu ódio”.

Junto com o sorriso vem essa bela lição. A nobreza dos sentimentos e a preservação do espírito olímpico, completando a prova com fair play, levaram o Comitê Olímpico Internacional a conceder-lhe, com toda justiça, a Medalha Barão Pierre de Coubertin.

Num ano em que o belicismo mundial parece ter aumentado, em que imagens de decapitações e humilhações a presos circularam pela internet, e que guirlandas explosivas foram colocadas em crianças numa escola pública na Rússia, a reação de Vanderlei Cordeiro de Lima ao incidente, seus gestos, palavras e o permanente sorriso ao falar do episódio são como um bálsamo. Por isso não poderia ser outro a levar o Prêmio Meu Sorriso do Ano – 2004.


Outros artigos do autor publicados no Jornal do Site Odonto


* Cirurgião-dentista sanitarista. Mestre e Doutor em Saúde Pública. Professor Associado (Livre Docente) da Universidade de São Paulo. Autor de Odontologia e Saúde Bucal Coletiva (Ed.Santos, 2002).

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