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Berlinguer e a saúde
dos brasileiros

Paulo Capel Narvai

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Giovanni Berlinguer recebe da Universidade de Brasília (UnB) o título de Doutor Honoris Causa duas décadas depois de lançar "Medicina e política" no Brasil (CEBES-Hucitec, 1978).

Ainda me recordo de sua entrevista nas páginas amarelas da Veja relacionando medicina e saúde com política enquanto o general Figueiredo declarava sua intenção de "prender quem fosse contra a abertura"... Tempos difíceis de lutas democráticas, greves operárias, manifestações estudantis, prisões.

Na saúde, alimentávamos o sonho da Reforma Sanitária brasileira e batalhávamos por ela. Muitos conosco, entre eles... Giovanni Berlinguer. O entomologista professor de Medicina do Trabalho da Universidade de Roma sempre que podia vinha ao Brasil falar da experiência italiana e de outras tentativas de reformas sanitárias na Europa e na América Latina. Numa dessas vindas lançou "A saúde nas fábricas" (CEBES-Hucitec-Oboré, 1983), relato de pesquisa iniciada em 1967 sobre saúde dos trabalhadores que teve a participação de nada menos do que 300 mil operários de diversos setores da indústria italiana.

A obra é um clássico nesta área. Cinco anos depois mais um livro: "A doença" (CEBES-Hucitec, 1988). Nele Berlinguer examina a doença em diversas culturas e épocas, utilizando abordagens inusitadas. Sobre esse livro, David Capistrano Filho escreveu: "A doença me chegou às mãos num momento em que minha vida estava por um fio (...) qualquer brasileiro, são ou doente, que tenha a tríplice ventura de saber ler, ter sensibilidade para os problemas de nossa gente e dinheiro para comprar livros, poderá saborear uma obra ao mesmo tempo séria e de leitura muito agradável." Essa é uma característica dos textos de Berlinguer: rigor teórico e prazer de ler. Coisas raras e preciosas.

No prefácio de "A doença" Hésio Cordeiro afirma que "Berlinguer nos faz retomar a doença como objeto do conhecimento e da ação para a reforma sanitária, e nos estimula a reencontrar neste objeto as determinações históricas que envolvem o ‘social’ e o ‘biológico’. Ele não se prende a esquemas rígidos dos quais a ‘epidemiologia histórica’ (ou marxista, estrutural ou social), muitas vezes, não soube ou não pôde romper.

Rico em relato de situações, Berlinguer trabalha os conceitos teóricos, retifica-os, vai ao real do processo saúde-doença com rigor teórico e compromisso social". Marcio Almeida faz menção ao "Minhas pulgas", um delicioso texto autobiográfico em que o inseto é destrinchado à luz da ciência, do comportamento e das artes, com muito bom humor e respeito.

Especialista no bicho, Berlinguer disse que escrever o livro foi "um desatino que me julguei no direito de cometer". Nos últimos anos, as "pulgas" do professor Giovanni têm sido as questões da bioética, às quais tem se dedicado com entusiasmo. Suas contribuições nessa área já o transformaram num dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento em nosso país.
     Além dos livros, Berlinguer proferiu inúmeras palestras e conferências em todos os cantos do Brasil: das universidades aos sindicatos, passando por conselhos de saúde. Em todos esses ambientes falou e ouviu, ensinou e aprendeu. Acertou e errou.

Volnei Garrafa, professor de Bioética da UnB, menciona um "texto ótimo" de Berlinguer em espanhol intitulado "Errando - en los dos sentidos - por la America Latina".

Trocadilhos à parte é inestimável a contribuição teórica e prática de Giovanni Berlinguer às lutas pela conquista da saúde e cidadania no Brasil e em toda a América Latina. Garrafa considera que "ele nos mostrou um ‘pensiero’, uma espécie de ideologia para a saúde, a partir da experiência da Reforma Sanitária Italiana da qual ele, como deputado no Congresso Nacional, foi relator".


De certa forma e indiretamente, um pouco do SUS de hoje, tem as contribuições que, de diferentes formas desde os distantes anos 70, Berlinguer vem generosa e solidariamente nos oferecendo. É bem verdade que o SUS que temos está muitíssimo distante do SUS que queremos. Mas essa é uma outra história.

O relevante aqui é que Berlinguer sempre esteve ao lado dos que se opõem à ferocidade e voracidade com que os mercadores da doença, com seus planos de inspiração neoliberal, atuam no setor saúde.

Aliás, o livro mais recente de Berlinguer publicado entre nós, "O mercado humano" (Ed.UnB, 1996) escrito a quatro mãos com Volnei Garrafa, trata exatamente disso: da compra e venda de partes do corpo humano.


     Para quem veio ao Brasil pela primeira vez antes de 1950, como representante europeu na União Internacional de Estudantes, é mais que justa e merecida a homenagem da UnB. Ela expressa, sem dúvida, o reconhecimento e a vontade de todos os brasileiros que não abdicaram do sonho e das lutas por saúde e democracia.


* Paulo Capel Narvai é cirurgião-dentista sanitarista. Mestre e Doutor em Saúde Pública. Professor do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.


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