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Mais dentistas?

Paulo Capel Narvai*
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A reação do ministro da Saúde aos dados sobre acesso à assistência odontológica no Brasil causaram, entre muitas lideranças odontológicas, impacto maior do que os números que a motivaram. Refiro-me, especificamente, ao termo "abismado" — utilizado por José Serra ao comentar as informações contidas no relatório da PNAD-1998 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), publicado pelo IBGE em agosto de 2000. Não foram poucos os que reclamaram do "desconhecimento" e da "ignorância" da principal autoridade pública do setor em relação à desassistência odontológica e ao elitismo do acesso. Sentar na cadeira do dentista continua sendo monopólio de classe social no Brasil. Insuportável privilégio, diga-se — mais uma cruel expressão das iniquidades que nos assolam. Muitos reclamaram do ministro, com razão. Choca mesmo constatar que, responsável pela saúde dos brasileiros, tenha ficado "abismado". Em defesa do ministro, um político reconhecidamente hábil e sagaz, deve-se reconhecer a franqueza da reação. Num lampejo, talvez não tenha tido tempo de filtrar seus sentimentos, formulando uma resposta "politicamente correta" — coisa que, aliás, fez logo em seguida, anunciando a "inclusão de dentistas nas equipes do programa de saúde da família", uma prioridade da pasta que comanda.

Os dados a que me refiro foram amplamente noticiados: dentre os brasileiros, 29,6 milhões (18,7% da população) nunca foram ao dentista. A porcentagem sobe para 32% na área rural.

Mas pergunto-me: o que tais números têm significado para o conjunto da categoria odontológica? Quantos dentistas, sobretudo os líderes à frente das principais entidades, têm informações sobre os milhões de excluídos da assistência odontológica? Não teriam ficado igualmente surpresos com as informações do IBGE?

Pelo menos uma conseqüência da pesquisa é previsível: vêm aí mais cursos de odontologia... O raciocínio é elementar: se há pessoas sem acesso a esse tipo de serviço é preciso produzi-lo. De acordo com o sistema econômico brasileiro, isso significa oferecê-lo no mercado — e a preços compatíveis com o poder aquisitivo dos "consumidores". Especialistas em saúde pública e em economia da saúde freqüentemente alertam para o equívoco desse raciocínio: serviços de saúde têm características distintas de outros serviços e o mercado não é o instrumento mais adequado para regular sua oferta. A formação da demanda também resulta de uma complexa rede de fatores. Os mecanismos de mercado funcionam apenas parcialmente nesse caso. Mas empresários, economistas e políticos, por razões amplamente conhecidas, costumam desconsiderar esses argumentos. Os resultados no Brasil são, da mesma forma, amplamente conhecidos de todos os dentistas.

Mas do lado dos dentistas, os argumentos têm sido bem pobres — para dizer o mínimo. A categoria tem primado pelo individualismo no trato dessas questões e pela apatia da maior parte das lideranças. Interesses menores e de grupos têm prevalecido. A histórica resistência à incorporação de pessoal auxiliar nos processos de trabalho odontológico tem feito com que, ainda hoje, seja uma raridade encontrar técnicos em higiene dental mesmo nos melhores programas públicos. O resultado é conhecido: serviços de baixa cobertura, caros, enfatizando ações curativas e desenvolvendo ações centradas no profissional de nível universitário. Ou seja: tudo o que quer a maioria dos dentistas que só vêem a si mesmos; tudo o que a população não precisa; tudo o que administradores públicos responsáveis evitam.

Não basta para o enfrentamento da atual política de formação de recursos humanos em saúde — aí incluídos os recursos humanos odontológicos —, a enfadonha citação de que "a Organização Mundial da Saúde recomenda 1 dentista para 1.500 habitantes." (Há variantes como 1/1.000 ou 1/2.000). Há pelo menos dois erros nisso: em primeiro lugar, a OMS não recomenda coisa alguma. Em algum momento alguém deve ter lido mal em algum lugar, citou erroneamente a OMS e, a partir daí, tem havido uma repetição mecânica e acrítica dessa proporção. Jamais encontrei a referência bibliográfica nos artigos que mencionam a tal proporção. Nos documentos da OMS, aos quais tive acesso, nunca li nada sobre o assunto. Até que algum pesquisador desvende esse mistério, pode-se concluir que trata-se de pura lenda. Como, aliás, tantas outras atribuídas à "OMS". Felizmente é lenda. Seria mesmo um absurdo supor que uma eventual proporção dentista por habitantes pudesse ser estabelecida como "ideal" sem levar em consideração aspectos elementares envolvidos no planejamento de recursos humanos odontológicos necessários em cada comunidade como, por exemplo, o seu perfil epidemiológico.

Em segundo lugar, não é nada inteligente endossar a "bandeira" do "contra a abertura de novos cursos de odontologia". Em linhas muito gerais, ouso afirmar que o Brasil, ao contrário de alguns países, tem os dentistas que precisa e precisa dos dentistas que tem. Não interessa à população e ao país dispor de um pequeno número de dentistas — assim como não faz o menor sentido dispor de um número descomunal... E também não interessa à população e ao país não poder contar com o máximo do potencial profissional, técnico e científico, dos dentistas brasileiros — e isso constitui um desafio ao adequado planejamento e organização dos serviços de saúde em todos os cantos do país. Tais serviços precisam cumprir sua função social: atender a todos, sem privilégios, sem discriminação, rompendo com todo tipo de monopólio. Por essa razão, entre outras, faz sentido sim pensar em novos cursos. Basta considerar que em alguns Estados (Acre e Tocantins, por exemplo), as universidades públicas não formam um único dentista. Como ser contrários a que o façam?


* Paulo Capel Narvai é cirurgião-dentista sanitarista. Mestre e Doutor em Saúde Pública. Professor do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.


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