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Ano Vi - Nº 80 - jJaneiro de 2004 - 2ª Quinzena |
A
discriminação no atendimento odontológico ao paciente portador de HIV/Aids Elaine Gomes dos Reis Alves* |
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O mundo já convive com a Aids há quase
24 anos. Muitas conquistas já foram obtidas, mas infelizmente, ainda encontramos
discriminação no atendimento a estes pacientes. Desde o início dos anos 80 a Aids ocupa um espaço importante no interesse da ciência. Reconhecida como pandemia, envolveu todas as áreas de pesquisas científicas que dizem respeito ao ser humano em sua totalidade única, individual e social. Inicialmente apresentada como "peste gay" por ter sido observada, principalmente, em homens que fazem sexo com homens (HSH) , veio impregnada de estigma e discriminação. Hoje, seu perfil, em âmbito mundial, passa pela feminização e pauperização. O vírus HIV que atingia 14 homens para 1 mulher, já tem a proporção de 1:1 no Estado de São Paulo; Vem aumentando em mulheres casadas e, para grande preocupação social, entre adolescentes. A expectativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) para esta década é que o número de mulheres infectadas passe a ser maior que o de homens. No século XXI, a Aids pode estar mudando sua condição de doença terminal para doença crônica, o que muda o status do convívio da sociedade com a Aids. Em relação às doenças que envolvem discriminação social, a Aids traz um estigma muito maior. Não é só o medo da contaminação, mas é o preconceito. A Aids fala de sexo, drogas, sangue, parto, sêmen, menstruação, prostituição, homossexualismo, traição etc... Traz à tona o que as pessoas têm de mais escondido, mais íntimo, velado: seus segredos e seus tabus. Ela faz uma devassa na privacidade das pessoas. Todos se sentem no direito de questionar, pensar e julgar. O indivíduo é trucidado psicológica e socialmente. Vigora a morte da dignidade. Infelizmente, o medo e o preconceito em relação à Aids ainda são mais fortes do que todo o conhecimento que se tenha sobre o assunto. Os profissionais de saúde são vastamente informados sobre os meios de infecção; sabem (ou pelo menos deveriam saber) como se proteger, como agir perante qualquer paciente que supostamente é portador de qualquer vírus. Porém, quando frente ao paciente sabidamente portador de HIV/Aids, muitos ainda estão dependentes de seus próprios medos. Vigora a visão empobrecedora de que o mal está localizado no indivíduo, decodificando a doença como anormalidade, desvio, inferioridade... raramente como diversidade. Atualmente, apesar de todo conhecimento e informação sobre o vírus HIV, a Aids e, principalmente, sobre as barreiras de biossegurança que devem ser utilizadas na área da saúde, lamentavelmente, ainda há recusa no atendimento odontológico à pessoa portadora de HIV/Aids. Muitas vezes essa recusa é de forma velada: "o consultório não está adequadamente equipado"; "o CD não tem especialização em Aids" entre outras desculpas. Importante esclarecer que a recusa é descabida uma vez que:
Em pleno século XXI, não há como o profissional de saúde alegar desinformação sobre Aids. Tal colocação chega a ser "pornográfica". As pessoas portadoras de HIV/Aids têm, em sua maioria, histórias de discriminação no atendimento odontológico. Todos nós que trabalhamos com essa população sabemos bem que, basta o paciente sair do ambulatório, para que os outros profissionais busquem, no prontuário, a forma de infecção. Dividimos os pacientes em dois grupos: vítimas e culpados (todos aqueles que, segundo nosso conceito de moral, são promíscuos) e nos permitimos absolver uns e culpar outros. Falamos "eles" e "nós", esquecendo-nos que "eles" somos "nós", com a diferença que "eles" têm o vírus, enquanto a maioria "nós" não sabemos se temos ou não. Mesmo nos serviços de atendimento dito "especializados", ainda encontramos CDs com duas luvas e duas máscaras somente para estes pacientes. Betinho costumava dizer que a Aids era a doença do medo e que essa Aids era muito mais avassaladora que a Aids doença. A recusa do atendimento a este indivíduo incorre no risco de ser processado judicialmente. Os cuidados com biossegurança devem ser rotina nos consultórios odontológicos. Todo e qualquer paciente pode ser portador de qualquer doença infecto-contagiosa. Pensar no bem da pessoa é olhar o paciente como alguém com direitos e atendê-lo como lhe é devido. Importante lembrar que o uso do termo "aidético" é absolutamente incorreto. A referência deve ser feita como pessoa "portadora do vírus HIV" ou "doente de Aids". Também importante é ressaltar que não existe "grupo de risco", mas sim "comportamento de risco" e que, todos nós, sem exceção, podemos, a qualquer momento, vir a ser "HIV-positivo". Parafraseando Arnaldo Antunes: "O corpo existe e pode ser pego [...] o corpo se cortado espirra um líquido vermelho. O corpo tem alguém como recheio." *Elaine Gomes dos Reis Alves Psicóloga do Centro de Atendimento a Pacientes Especiais - CAPE-FOUSP; mestre em Odontologia pela FOUSP; doutoranda pelo IPUSP; membro do Comitê de Ética em Pesquisa da FOUSP; autora do livro "Profissionais de Saúde: Vivendo e convivendo com HIV/aids", Ed. Santos; professora colaboradora da FOUSP e professora da UNIP/SP Disciplina Psicologia e Odontologia E-mail: egralves@usp.br |